O médico e o monstro


Escrito em: 02/03/2017 por Anderson Dias

Introdução

“O médico e o monstro ou o estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde” é um dos grandes clássicos da literatura e versa sobre a dualidade do eu.

Originado em um sonho (pesadelo?) do autor, lapidado pelas críticas de seus primeiros leitores, se tornou um debate moral sobre quem de fato somos.

Na minha opinião o livro poderia ser dividida em três grandes partes:

  • A investigação
  • A dualidade do crer
  • A dualidade do eu

A investigação

Os oito primeiros capítulos (de um total de dez) narram a investigação iniciada pelo advogado Mr. Utterson ao se deparar com uma estranha história de Mr. Hyde e seu envolvimento com um grande amigo Dr. Henry Jekyll.

A antonímia de caráter e personalidade desta amizade intriga o “detetive”. Um é essencialmente mau e repulsivo. O outro reconhecido por sua bondade e virtude.

A maldade das ações de Mr. Hyde avultam ao longo da história culminando com um assassinato estarrecedor.

A aparente omissão de Dr. Jekyll intriga Mr. Utterson que decide tomar ação temendo pelo bem de seu amigo.

Outras personagens se envolvem na história enquanto o mistério toma cena.

Dr. Lanyon, amigo do advogado e do médico, se envolve na trama e acaba por descobrir algo aterrador que o leva a morte.

Enfim, na última tentiva de contato com seu amigo que a tempos estava sumido, o investigador acaba descobrindo que Hyde e Jekyll eram duas pessoas em um, e que Hyde dera fim à sua mísera vida.

Para solucionar o estranho caso Mr. Utterson lê duas versões da história: uma do Dr. Lanyon e outra do próprio Henry.

A dualidade do crer

O nono capítulo do livro é a carta de Dr. Lanyon expondo os fatos ocorridos em sua casa, quando ele vê a transformação de Hyde em Jekyll.

Entra em questão o primeiro debate do livro.

Lanyon é estritamente científico e calculista. Segundo o próprio Mr. Hyde ele era alguém “preso às visões mais tacanhas e materiais, que negou as virtudes da medicina transcendental”.

Debate antigo entre os dois colegas que viam o conhecimento de formas distintas.

Diante da pavorosa transmutação, Dr. Lanyon se perde.

Vi o que vi, e ouvi o que ouvi, e minha alma adoeceu; ainda hoje, quando aquela visão já está se apagando de meus olhos, eu me pergunto se acredito no que aconteceu, e não sei o que responder. Minha vida foi completamente desestruturada; não consigo mais dormir; o terror mortal me acompanha em todas as horas do dia e da noite; e sinto que meus dias estão contados, e que devo morrer; mesmo assim, morrerei incrédulo.”

A visão que teve desestrutura toda a cosmovisão do médico, que mesmo assim não aceita ser mudado.

Esta luta entre o que aconteceu e o que se quer crer destroi sua mente à medida que ele não se cabe mais em nenhum dos dois extremos.

O mais intrigante é que em nenhum momento o Dr. Jekyll usou de meios místicos para chegar à tal feito. Ele utilizou da própria ciência para realizar seu experimento.

A diferença entre os dois médicos está no fato de estar aberto à novas possibilidades e caminhos.

A dualidade do eu

No décimo e último capítulo temos a exposição dos fatos do ponto de vista de Jekyll. Em seu último momento de sanidade o doutor deita sua história em papel.

Numa profunda auto-análise ele cita que suas aspirações acabaram induzindo-o ao bem, livrando-o de falhas mais grotescas para a sociedade. Diante dos olhos de outrem ele seria considerado um bom rapaz, mas ele sabia de seus próprios defeitos.

Com o passar dos anos essa fachada foi se revelando diante de seus olhos e ele então percebe que vivia uma vida dupla:

“Assim, aconteceu que ocultei meus prazeres e que, quando alcancei anos de reflexão e comecei a olhar a minha volta e fazer um balanço de meu progresso e de minha posição no mundo, deparei-me com uma duplicidade profunda da vida.”

Existia o doutor que todos conheciam e um homem de prazeres que ele ocultava de todos.

Instigado pelo místico inicia uma pesquisa cientifica que o condena eternamente. Ele enfim percebe:

“…que o homem não é apenas um, mas dois.”

Ele supunha que:

“Se cada um deles, eu dizia a mim mesmo, pudesse ser alojado em identidades separadas, a vida seria aliviada de tudo o que era insuportável; o injusto seguiria seu caminho, liberto das aspirações e do remorso de seu irmão gêmeo mais íntegro; e o justo poderia andar com firmeza e segurança em seu caminho para a elevação, fazendo as coisas certas nas quais encontrasse prazer, e não mais exposto à desgraça e à penitência nas mãos desse estranho malévolo.”

Após conseguir todos os ingredientes para sua poção o médico toma coragem e bebe-a tornando-se em Edward Hyde.

O seu novo eu trouxe uma mistura de sentimentos:

“Havia algo estranho em meus sentimentos, algo indescritivelmente novo e, por causa dessa própria novidade, incrivelmente prazeroso. Senti-me mais jovem, mais leve, mais feliz naquele corpo.”

Todas as amarras que ele tinha construído ao longo de sua vida para evitar que o seu lado mau aflorasse, estavam agora desfeitas e essa liberdade o inebriou. Enfim ele se tornou: “um escravo do pecado original”.

Para finalizar seu experimento, toma novamente a poção e volta a ser Henry Jekyll. Porém, para sua surpresa e maldição, não há em seu estado natural somente a bondade.

O composto não separava um lado bom e um lado mal. Só tinha poder de liberar o consumidor das convenções que o impediam de satisfazer seu eu maligno. Não havia descoberto como separar os dois eus, somente como instigar seu mal.

Sem perceber Henry entra num mundo de desculpas onde, como viciado, se joga nos braços de Hyde para dar escape à seus mais íntimos desejos.

“Era Hyde, afinal de contas, somente Hyde, o culpado por tudo.”

Não admitia culpa nos atos do seu outro eu, somente se considerava conivente:

“pois mesmo agora não sou capaz de admitir tê-las cometido”

Pouco a pouco Hyde toma lugar no corpo do médico e mesmo sem tomar a poção ele começa a assumir a sua forma nefasta.

Percebendo que Hyde poderia toma-lo de vez decide parar de tomar as poções e vive em abstinência, mas não resiste e cai, e em sua maldita queda assassina um homem.

O seu lado bom entra em desespero e angústia e decide nunca mais tornar a torpeza. Era tarde. Subitamente Hyde toma lugar de seu corpo e agora não era como no começo.

As poções não serviam mais para libertar de Hyde,
e sim para livrar Henry do seu eu mal.

Com o fim da provisão de sais para suas fórmulas o médico escreve a sua última carta esperando o momento da maldição: por fim deixaria de existir Jekyll e Hyde assumiria para sempre sua consciência.

“cheguei ao ponto final de minha existência, e o que virá a seguir é problema de outrem, não meu.”

Análise da obra

Inicio pelo retrato do Dr. Lanyon da transformação de Hyde em Jekyll.

As vezes estamos tão presos à uma crença que não
damos espaço para vislumbrar a verdade do fato.

Ele não quis aceitar que existia a possibilidade de algo transcendental e mesmo tendo os fatos em mãos, negou-o e se destruiu.

Se nossa visão de algo for extremamente rígida, ao nos depararmos com a verdade que não aceitávamos, seremos destruídos a menos que sejamos flexíveis. Se não morreremos incrédulos, mesmo tendo o fato grudado em nossas mentes.

É muito mais que uma luta entre fé e ceticismo. É uma conjunção dos dois fatores onde no final a própria ciência demanda fé na possibilidade.

Lembro-me das palavras de Mario Sérgio Cortela, filósofo brasileiro, durante entrevista no programa Roda Viva:

“A grande diferença entre religião e ciência, é que religião é crer para ver e ciência é ver para crer.” Mario Sergio Cortela

Mas por vezes, como demonstra o Dr. Lanyon, há dentro da ciência um pouco de fé. Fé que é possível fazer algo que hoje a ciência não comporta ou entende.

Por fim ele viu e não creu. Isso é contraditório para um cientista.

Creio que esta é uma crítica à convicção, mais do que a ciência.

A carta de Dr. Jekyll é mais profunda e também controversa. Parece-me uma confissão disfarçada de relato dos fatos. Como o relator é o próprio objeto do relato torna-se passível de avaliar de acordo com sua consciência.

Desta forma eu leio a sua carta não como quem vê o que de fato sucede, mas como quem analisa uma confissão de terceiro e cabe ao leitor julgar os fatos e assumir o papel de esquadrinhador da alma do doutor.

Lembro-me facilmente das palavras do apóstolo Paulo aos corintos:

“Porque, se nós nos julgássemos a nós mesmos, não seríamos julgados.” I Coríntios 11.31

De fato é isto que acontece com o doutor e cabe a nós analisar o ocorrido também. À primeira leitura pode parecer que ele expõe os fatos, mas há uma parcialidade em suas análises e aí entra a importância da crítica do leitor.

O doutor crê que há dentro de nós um homem bom e outro mal. Podemos ser mais um do que outro, a medida que definimos quem queremos ser, mas sempre seremos ambos em alguma proporção.

Pelas suas aspirações foi levado a exercitar seu lado bom com maior frequência, mas dentro de sí ardia a paixão pela iniquidade e ao ceder à esta força era tomado de culpa.

Através de experimentos crê que conseguirá separar enfim estes dois seres permitindo que ambos se satisfaçam completamente: um em sua bondade e outro na maldade pecaminosa. E aqui, no meu ver, comete seu grande erro.

Bebe a fórmula a primeira vez e se torna Edward Hyde, e sente o sabor da maldade em seu corpo porém o mal não o havia dominado totalmente, fora assim e ele não se deixaria tornar novamente pro lado bom.

Foi o primeiro gole de um vício que o levaria à morte. Inicialmente amargo, depois doce e prazeroso, tomou conta de seu ser.

Bebe novamente a poção na esperança de se tornar bom e aqui entra a frustração.

A bebida era capaz de aguçar seu lado mal,
mas ele voltava a ser o homem dualista no segundo gole.

O lado bom não o dominou. Continuava sendo tentado da mesma forma, mas agora, pro seu infortúnio, encontrou um abrigo seguro para a maldade de seu coração.

Tivera se tornado de fato mau e não daria espaço a voltar pro bem, da mesma forma tivera se tornado totalmente bom e nunca mais desejaria voltar a forma vil.

O médico sem perceber não alcançou seu objetivo, antes criou pra si uma maldição, um vício que o destruiria pra sempre. Sem saber achou a fórmula que o livrava da má consciência. Poderia toma-la e satisfazer-se em seus delitos sem culpa.

Uso vício aqui pois é o mais próximo da realidade. Quantas vezes ouvi a escusa: “não era eu, era a bebida”. “Não era Jekyll, era Hyde”.

Conclusão

Me surpreendi bastante com o livro. Tinha lembranças remotas de um filme antigo contando a história e, hilariamente, de Pernalonga em sua adaptação. O livro me fez recriar a imagem do conto e me trouxe uma grande admiração pela sua complexidade.

Demonstrou uma profundidade muito maior nos últimos dois capítulos. É um debate intenso do eu e que abre espaço para a dissussão franca do nosso caráter, das desculpas que nos damos e do desejo ardente em nosso coração de satisfazer nosso eu mal.

E termina inconclusivo, abrindo espaço para interpretação dos fatos para cada leitor. Cabe a nós discernir o bom doutor em cada um de nós e fujir da tentação da poção.